rastos
Eduardo Matos
Manuel Santos Maia
Renato Ferrão
Inaugura
Manuel Santos Maia
apresenta o projecto:
http://manuelsantosmaia-non.blogspot.com/
Em Rastos, Eduardo Matos, Manuel Santos Maia e Renato Ferrão apresentam três trabalhos inéditos, em instalação e escultura, que convocam elementos relacionados quer com o espaço e a arquitectura, quer com uma ideia de memória, ou que utilizam estes mesmos elementos na problematização de outras temáticas relacionadas com a vivência contemporânea.
Para esta exposição, Eduardo Matos concebeu uma escultura em diversos materiais e socorrendo-se de vários meios artísticos, como o vídeo, a fotografia, o desenho e os objectos. Os vários elementos que compõem a peça, dispostos sobre uma mesa, serão sujeitos a uma apreciação e relacionamento por parte do espectador que, assim, acaba também por integrar a obra. Um monitor que projecta luz sobre um edifício em ruínas, um conjunto de desenhos e esboços técnicos de projectos de arquitectura – algo esquecido e guardado que agora se revela – ou uma gaveta que contém registos fotográficos: estes são alguns dos elementos utilizados por Eduardo Matos na composição da presente obra.
Manuel Santos Maia propõe a criação de três instalações constituídas por diversos elementos, sendo que a temática central é a migração, mais especificamente os processos migratórios verificados no e a partir do território nacional. A reflexão em torno desta questão concretiza-se através de um mural que convoca a paisagem arquitectónica tradicional alentejana e da costa sul do Algarve, sendo que algumas características típicas deste tipo de construções são utilizadas no mesmo mural. A alusão a um determinado percurso migratório não concretizado, bem como da morte, aparece nestas obra através da colocação no chão de representações tradicionais portuguesas de andorinhas em barro, que se encontram quebradas (provenientes dos países a sul da Europa, as andorinhas representam também as migrações que actualmente se verifica entre o norte de África e a Europa). Ao longo da parede oposta serão também colocadas representações de postes de electricidade. Os fios, suportados por estes postes, irão atravessar o espaço expositivo, representando ligações, mas também convocando os lugares onde normalmente observamos algumas espécies de aves migratórias, como as andorinhas ou as cegonhas.
A escultura/instalação da autoria de Renato Ferrão que integra esta mostra é composta por um conjunto de estruturas de auxílio a uma acção. Todas são reproduzidas em escala inferior às que são próprias a estas construções sendo que cada uma delas não estará necessariamente consonante com as outras, procurando-se explorar, nas suas relações com o espaço expositivo, distâncias, por vezes incongruentes, e profundidade de campo. Estes objectos encontram-se, quando não desmantelados, num estado estacionário e em reunião pelo que podemos dizer que se trata de um conjunto.
Nesta instalação estabelecem-se relações que se referem a trabalho e alienação, à procura permanente de equilíbrio entre um pré estabelecido e a necessidade de encontrar brechas...
Notas biográficas:
Manuel Santos Maia nasceu em Nampula, Moçambique, em 1970. Licenciado
Natural do Rio de Janeiro, Brasil, Eduardo Matos, que actualmente vive e trabalha no Porto, licenciou-se no curso de Artes Plásticas – Pintura, pela Faculdade de Belas Artes do Porto. Sendo um dos mais proeminentes jovens artistas da cidade, tem participado activamente nos inúmeros projectos alternativos promovidos no Porto à margem dos circuitos galerístico e institucional, como por exemplo o Salão Olímpico, do qual foi membro fundador. Em 2005 mostrou desenho, pintura e escultura na exposição To Drag, na Galeria Quadrado Azul, sendo que através destas obras o artista abordou criticamente temas relacionados com a cidade contemporânea. Encontra-se representado em diversas colecções de arte, como por exemplo as de Paulo Mendes, da Fundação PLMJ e das Universidades do Porto e do Minho, entre outras. Actualmente participa também na exposição “Depósito: anotações sobre densidade e conhecimento”.
Tendo terminado em 2001 o curso de artes plásticas, vertente de escultura, pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, Renato Ferrão (Vila Nova de Famalicão, 1975) tem vindo a assumir-se como um dos mais destacados nomes da jovem geração de artistas cuja actividade se desenvolve na cidade do Porto. Membro fundador do projecto Salão Olímpico, no âmbito do qual se realizou um vasto número de exposições à margem dos circuitos institucional e comercial, Renato Ferrão produziu vários projectos em parceria com outros artistas, dos quais se destacam a mostra No Future, que esteve patente na Galeria 24B em Oeiras, em 2005, cujos trabalhos forma desenvolvidos com Nuno Ramalho, ou The Stars Turn Into Stripes Forever, com Eduardo Matos (2003). Renato Ferrão produz uma obra escultórica na qual tem explorado ideias relacionadas com temas como o consumismo, a produção em massa, a sociedade do espectáculo ou a percepção de determinadas realidades, sobretudo no contexto da criação artística. Em 2006 realizou, na Galeria Quadrado Azul, a mostra “Quem tem olho é Rei” e integra actualmente a exposição “Depósito: anotações sobre densidade e conhecimento”.
Rastos de Eduardo Matos, Manuel Santos Maia e Renato Ferrão.
Aida Castro, Junho 2007
O corpo vai efectuando marcas. Poderíamos pensar na escrita que desde a agricultura, a cultura da terra, efectiva necessidades e ambições humanas. Traçar e circunscrever o terreno, desenhar nesse espaço linhas de cultivo, transformar o meio para produzir alimento, cuidar da cultura. Mas a convicção humana decidida a marcar o mundo acabou por subverter nesse corpo que efectua e risca e traça: a colónia penal de Kafka apresenta uma máquina de escrita capaz de registar leis na carne dos corpos, as agulhas gravam em profundidade a marca consoante a gravidade da desobediência ou do crime. Grafar, traçar, metamorfoseou num discurso de ordem onde se optimizam relações de poder. Estes perigos para o corpo, entenda-se corpo na sua máxima extensão, indiciados por vários autores no final do século XIX e princípio do século XX alertam, e requerem a responsabilização, a crítica e a reflexão sobre a acção humana e a marca que deixa inscrita. Essas marcas são também palavras, imagens, signos — spectrums. Baudrillard, próximo do final do século XX, assinala um corpo marcado, ou vala de signos, aquele que se enfeita e brilha por ter estado sob castração[1]. Um trabalho sobre o corpo e os seus signos, possível numa situação pós-grandes guerras, que critica o jogo das marcações impostas por um sistema altamente produtivo capaz de definir comportamentos, apetites e carências.
Aproximando-nos do título desta exposição, rasto é antes de tudo associado a uma condição animal e natural, o rasto que fica de uma passagem, uma pegada. Numa das tricotomias do signo elaborada por C. S. Peirce[2] o índice é uma divisão do signo em conjunto com o ícone e o símbolo. O índice é um estado do signo que deixa rasto. Pode ser a pegada que deixa a imagem da passagem do corpo. O fumo que acusa fogo. As ruínas que certificam catástrofe. O primeiro signo é decomposto para um segundo por contiguidade física. O ancinho que toca e transforma a terra marca uma cultura. O rasto, uma marca sensível que denuncia directamente um corpo, se quisermos, o negativo, o subjectivo. Peirce acrescenta ainda que todo o indivíduo é um índice degenerado das suas próprias características, dilatando aquilo que entende por índice à experiência e à vida, e continua afirmando que tudo o que chama a atenção é um índice. Tudo o que nos surpreende é um índice, na medida em que ele marca a junção entre duas posições da experiência. A reunião dos três autores na exposição Rastos, uma colectiva onde cada um abre uma marca, é, no mínimo, índice de reflexões individualizadas. Como hipótese colectiva reúne, sem haver essa pretensão ao nível dos trabalhos. Cada um a falar do seu canto, a farejar e a deixar rasto no terreno, sem luta entre si, na diferença habitam a sala.
Manuel Santos Maia na continuação do desenvolvimento de NON[3], aqui a versão Non – parte do seu mundo, delimita na pretensão de uma estética portuguesa, se não de imagens portuguesas, quereria dizer, visível quando se folheia a apresentação integral do trabalho. A evidência formal neste último, desde as andorinhas migrantes à lista azul das casas do sul e do mar, as arquitecturas suspensas dos ninhos e dos postos de electricidade, vem da preocupação de instalar um pedido de atenção a iconografias inocentes que podem representar contextos problemáticos como o fluxo de emigração. De Portugal, mas não só, porque as linhas que atravessam os postes onde pousam as aves pronunciam ligações, este trabalho amplia-se da periferia para o centro, do local para o global. Nessa horizontal paisagem algumas das andorinhas vivem com asas quebradas, e desfeitas as possibilidades de voar acabam na morte do país que já não importa ser, ou não ser, o seu. Querendo averiguar as razões actuais das migrações e, principalmente, descristalizar as reflexões sobre essas mesmas, o autor opta por traçar uma geografia de lugares, casas temporárias entre o regresso e o trabalho, tendo em conta a fragilização do corpo que migra. Esquivo de traços e mais próximo da alegoria, Renato Ferrão rasga brechas entre as almas e os corpos, partindo da condenação do corpo à gaiola e da mente ao falso[4]. Num parágrafo dita o fogo do apetite ao corpo, sempre suspenso na redução à expressão de uma necessidade — o trabalho. E se a fome paira? Os objectos camuflados de si, o andaime, os baldes pretos, os cavaletes e o barrote de madeira, ligeiramente adulterados na sua substância denunciam falácias que abrem a possibilidade de criar ficção. Os três pólos de falsa indiferença, não esquecendo a “massa cinzenta” várias vezes medida, transpiram uns para os outros a ansiedade e a (des)necessidade de manutenção contínua exigida ao corpo, à mente e ao espaço. Corpo são e mente sã é treta. Vai tudo dar à morte do bicho no barrote. E fica o assobio como líquido que está entre o trabalho e a refeição. O som alienado que se projecta da boca, um escape de todas as dimensões e carências do corpo como se ainda fosse impossível gravar voz. A voz, esse elemento que intimava o corpo para se libertar num qualquer abismo. A mesa da entrada chega a pronunciar o lugar das refeições, ou o lugar onde se deleitam prazeres. Eduardo Matos convoca primeiro a mesa com todas as suas significações. O olhar horizontal, vertical e obliquo, ascendente ou descendente, irá perceber que a mesa, planeada como escultura, serve tanto de apoio como de arquitectura. De baixo para um cimo, da ausência para a luz, acedemos a abstracções que iniciam no desenho imperceptível. É negro. Do chão para as gavetas, abre-as. A fotografia como rasto não diz mais daquilo que é. Luz. Espaço de trabalho, espaço translúcido. Até se chegar ao banquete do topo da mesa. Apesar da ruína estar sempre primeiro, na medida em que visualmente temos acesso mais imediato, não consigo deixar de direccionar a leitura da peça no sentido baixo/cimo. Uma leitura tão simbólica, para nós ocidentais, quanto a esquerda/direita. Mas se na superfície está a destruição, uma destruição maquetizada, se não um plano, resta olhar. Olhe. O edifício moderno em escombros iluminado pelo outdoor incapaz de sintonizar. Os três trabalhos têm pelo menos um rasto comum tangente à morte.
[1] O corpo erótico, cheio de pintura adereços e potenciações, como encenação da castração. No fundo o reconhecimento receoso da castração. In, Baudrillard, J.; A Troca Simbólica e a Morte I, edições 70. P. 170.
[2] In, Peirce, Charles S.; Écrits sur le Signe, Éditions du Seuil; Paris 1978. Pp. 153-161.
[3] Verificar o projecto em http://manuelsantosmaia-non.blogspot.com/
[4] Estas próximas citações marcadas em itálico são expressões do artista.
Galeria Quadrado Azul – Porto