ENCONTROS COM ARTISTAS E ESCRITORES

convidado: Manuel Santos Maia

SÁBADO | 10 ABRIL | 16H00

Manuel Santos Maia é o autor da exposição Non_extremo do mundo, patente no Museu do Neo-Realismo até 11 de Abril, integrada no ciclo de arte contemporânea The Return of The Real – 10.

O encontro tem lugar no espaço da exposição.

Conflitos identitários

por David Santos

No final da década, o filósofo José Gil identificou em Portugal um “medo de existir” letárgico que nos prende ainda ao vazio e à normalização social. Os problemas com a memória e o passado político, bem como com o sentido de pertença a um colectivo ligam os portugueses a uma conflituosa indiferença perante a imagem do seu próprio país.

Ao partir de uma reflexão sobre estes valores e características, Manuel Santos Maia apresenta no Museu do Neo-Realismo uma nova etapa do seu mais recente projecto artístico, agora intitulado “non_extremo do mundo”. Elaborando uma íntima relação com alguns dos elementos que forjam a identidade do nosso país, Santos Maia recorre a uma estratégia de fragmentação disciplinar, ao acentuar de novo uma das suas principais características processuais: a biografia museificada. Na realidade, desde o projecto “alheava” (1999) que o artista cruza a noção de documento com a experiência individual e familiar, para alcançar finalmente uma espécie de “memorabilia” colectiva, enquanto espelho antropológico que nos liga a todos pelo filtro de uma “intimidade documentada”. Fotografias, filmes, álbuns familiares, gravuras intervencionadas e outros inesperados objectos readymade são alguns dos materiais utilizados por Manuel Santos Maia nesta instalação, através da qual reflecte em torno de questões como a guerra, a descolonização e a imagética popular ou a estética portuguesa entendida como expressão de uma “identidade nacional” ambígua, marcada, cada vez mais, por uma precária estabilidade, resultado dos efeitos de influência cultural alimentados pelos fluxos da emigração portuguesa recente e a reciprocidade paralela, mas determinante na sua influência crescente, trazida pela imigração global que se fixa em território português.

É neste sentido que, actualmente, a ideia de “portugalidade” ou “identidade nacional” vive dias de uma inevitável redefinição, por necessidade de reenquadramento de uma complexa plêiade de experiências sociais, voluntárias ou forçadas pelas circunstâncias de uma intensa transitoriedade de bens e pessoas, impondo-se assim uma nova espécie de comunhão migratória sobre as ideias de contacto e interculturalidade que marcam invariavelmente as hipóteses de uma portugalidade contemporânea. Nessa releitura devemos acentuar os termos de uma comparação entre momentos históricos distantes, mas com pontos em comum. Não podemos esquecer que a “expansão marítima portuguesa” resultou de um conjunto de necessidades de sobrevivência económica, identitária e territorial, marcadas sobretudo pela ideia de conquista de uma vida melhor, onde a viagem, a aventura pelo desconhecido e o contacto com o mundo se transformaram progressivamente em conceitos que inspiraram não apenas os portugueses do final da Idade Média a promover a primeira grande etapa da globalização, como quase todas as gerações seguintes que, imbuídas nesse espírito, mas motivadas no essencial pelo mesmo tipo de necessidades, cunharam aos poucos uma das aparentemente mais exactas marcas identitárias da nossa “portugalidade”: a miscigenação no contacto com o “outro”. Basta reconhecer, para isso, a tendência para a fusão de raças que a sociedade brasileira representou desde cedo por comparação com outros países do continente americano, ou o cruzamento cultural que determina ainda hoje a diferenciação dos países africanos de língua oficial portuguesa.

Mas se, nos primórdios do mundo moderno, Portugal esteve na vanguarda de um processo que aproximou limites geográficos, unindo oceanos e continentes a partir de rotas marítimas nunca antes traçadas, parece hoje navegar sem bússola, ou à deriva, perante o seu destino colectivo, perdido na sua identidade e objectivos após a resignação perante a perda de influência no mapa político internacional, de que o doloroso processo da guerra colonial e consequente descolonização terão sido os derradeiros e mais sangrentos episódios, espécie de despedida do famoso “Mundo Português” e real desvanecimento sobre a ilusão de pertença à elite das nações que dominam o planeta. Só nos anos 70 Portugal percebeu, por inércia e isolamento internacional, que o seu lugar no mundo não era já o da herança expansionista, mas o de um país atrasado, analfabeto e pretensioso, que descurara um verdadeiro desenvolvimento da vida moderna e estava agora diante da sua desestruturação geográfica e, consequentemente, da sua identidade política e social.

Saltando do local para o global, e vice-versa, Portugal vagueou sempre entre o passado de um nome mistificado por aventuras marítimas e o destino de um “Non”, sem “direito nem avesso”, fomentado pela desorientação dos que lideraram primeiro o reino e, depois, a nação. No primeiro volume dos Sermões (1679), o Padre António Vieira fixava uma ideia de “não” como “non” latino que significaria, daí em diante, muito mais do que a simples negação: “Terrível palavra é um Non. “Non” não tem direito nem avesso: por qualquer lado que o tomeis, sempre soa e diz o mesmo. Lede-o do princípio para o fim ou do fim para o princípio, sempre non, quem fez "não" tão breve, não quis que se dilatasse. O non mata a esperança, que é o último remédio que deixou a natureza a todos os males”[1]. A desesperança arrastada por este “non” curto e incisivo repercutiu-se desde então, tal como previra António Vieira, pelas indecisões da política nacional, ritmadas entre a ambição do “Quinto Império” e a pequenez logo revelada, conduzindo Portugal a uma titubeante sobrevivência, entre a paradoxalidade de uma expressão colectiva que vê nos seus mais de oito séculos de existência uma estabilidade inalienável e, ao mesmo tempo, a matriz de um espírito de indecisão ou “medo de existir”, como nos lembra José Gil, que condena todo um país à inacção, ou mesmo à esquizofrenia. O mesmo sentido de magoada reflexão identitária é referido no título e na narrativa visual do filme “Non ou a vã glória de mandar”, a magnífica leitura do cineasta Manoel de Oliveira sobre Portugal, que muito influenciou Manuel Santos Maia a desenvolver a sua própria ideia de “non”. Ao “non” que sempre nos guiou, mesmo sem o sabermos, juntou-se ao longo dos tempos a hesitação constante de uma existência comum, que deveria ser pensada, segundo a tradição, enquanto nação e identidade colectiva. Estes dois sentidos seculares e que nos têm enleado de um modo particularmente gravoso são responsáveis, afinal, por uma profunda limitação ao nível das convicções necessárias para agirmos sobre o nosso presente e desenharmos um futuro mais consentâneo com o destino de um mundo muito diferente daquele que levou Portugal a “agir” pela última vez. Entre o século XV e o século XXI, o mundo extremou o seu processo de globalização, atraído primeiro pela expansão capitalista e industrial, e mais recentemente por uma telemática sistémica e quotidiana que alterou radicalmente os códigos de identidade política, social e cultural das várias faces do planeta, e onde, por essa mesma ordem de razões, a miscigenação e a interculturalidade tendem a reconfigurar sistematicamente a imagem que temos da nossa própria identidade, reconhecendo assim que esta é hoje marcada, no essencial, e de um modo estruturante, pelos ritmos da sociedade de informação e do espectáculo global, bem como pelas subterrâneas mas persistentes influências das culturas trazidas pelos imigrantes e pelo novo surto da emigração nativa. Isto é, a nossa identidade será cada vez mais uma identidade global, marcada pelo sistemático reenvio de fontes e raízes transitadas com as pessoas que elaboram vidas longe da sua terra e misturam, naturalmente, valores e significados. Essas pessoas transformam assim a sua relação com o destino de origem, alterando ainda, de um modo profundo, a identidade dos lugares de chegada, as suas experiências sociais e culturais, num processo natural de conflito e aceitação que, lentamente, nos transforma a todos em cidadãos globais, cada vez menos ligados a uma identidade nacional definida com base num passado mítico e distante. Esta distância que urge reconhecer para consolidar o efeito da sua desmistificação não se refere apenas ao tempo, como sobretudo à alteração da noção de espaço geográfico (hoje global e, em certa medida, sem fronteiras), assim como às práticas e experiências de sociabilidade que distinguem hoje, mais do que nunca, o passado a que já pertencemos (do qual guardaremos por certo ainda alguns traços) e o presente do qual, de facto, fazemos parte, por muito que isso inviabilize uma qualquer ideia estável de “portugalidade” ou “identidade nacional”.

Ora, é uma nova e descomplexada leitura sobre a desorientação identitária portuguesa que o projecto “non” de Manuel Santos Maia tem vindo a intensificar ao longo das suas várias fases. Neste projecto expositivo marcadamente pós-minimalista, onde convergem vários sentidos e um aparato interdisciplinar de instalação, Portugal não é um país sem futuro, mas é um país com “medo de existir” e com problemas com a sua imagem mais inconveniente. De um modo deliberado, o artista recorre, por isso, a uma variedade díspar de imagens, sons e objectos que reclamam todavia, como grito silencioso, uma ligação conflituosa com o nosso passado mais recente, mas já olvidado. De “caixas métricas” e quadros de ardósia, que evocam antigas salas de aula e métodos de ensino entretanto abandonados, a caixas de arquivo morto e cavaletes de pintura obsoletos, passando por uma imensa e barroca moldura que desmesuradamente enquadra resquícios esquecidos da nossa identidade de outrora, podemos encontrar na instalação “non_extremo do mundo” um conjunto de elementos verbais, figurativos, iconográficos e objectuais que configuram uma crítica máquina do tempo, que nos transporta não apenas para o passado, mas para a nossa actual ideia de passado, sua fragmentação e instabilidade significacional. É deste propósito revisionista, apelando sempre a uma reinterpretação sistemática da nossa identidade, que o trabalho de Manuel Santos Maia evolui para uma situação de comentário sociológico, onde os valores sobre o nosso passado colectivo são questionados com um sentido quase perturbador, lembrando ainda os universos criativos nesse sentido desenvolvidos por figuras como o realizador José Álvaro Morais ou o poeta quase esquecido (mas lembrado por Santos Maia nesta exposição com um filme a ele dedicado) Francisco Palma Dias, e onde Portugal sofre um rombo cirúrgico nas suas pretensões de unidade cultural e antropológica. A identidade de um país antigo e velho, que aguarda ainda renovação, é aqui significativamente abalada por processos de justaposição simbólica que remetem para uma acentuada redefinição do quadro conceptual que enforma uma ideia de existência comum. O que resta de Portugal como nação talvez se reduza hoje, como defendera Fernando Pessoa no século passado, ao exercício global da língua portuguesa e ao reconhecimento identitário que daí advém. Talvez por isso, Santos Maia insista num círculo restrito de grande vultos da cultura portuguesa: Camões, Padre António Vieira, Herculano, Garrett, Eça de Queiroz, Pessoa, Eduardo Lourenço ou Manoel de Oliveira ocupam ainda hoje um importante lugar no caleidoscópio de referências críticas, mas constituintes de uma certa ideia de “portugalidade”, que alimenta o projecto reflexivo proposto por “non_extremo do mundo”. Sobre as ruínas do museu e da cultura moderna[2], entre a ficção e a realidade, os fragmentos de uma identidade perdida e a sua reconfiguração possível perante o quadro da globalização, Manuel Santos Maia propõe-nos um caminho de assumida instabilidade identitária, onde o conflito de valores se repercute enquanto alternativa às imagens pré-concebidas do nosso quotidiano e ao vazio acrítico que tende hoje a diminuir o exercício da cidadania a uma mera expressão eleitoral.


[1] Cf. António Vieira, Sermões do Padre António Vieira, ed. lit. de Margarida Vieira Mendes. 4ª edição, Lisboa: Editorial Comunicação, 1992.

[2] Cf. Douglas Crimp, On the Museum’s Ruins, Massachusetts, MIT Press, 1993.

CONTACTOS

Museu do Neo-Realismo Rua Alves Redol, nº 45 2600-099 Vila Franca de Xira